Âmago


São dias de âmago todos aqueles em que me sinto a despedir de quem sou.
O relógio apenas me recorda de que o paradigma do tempo há muito conspurcou os seus desígnios. Todos os cenários que fui adornando ao longo da minha existência tinham como premissa um recorrer crónico ao monstro do amor como motivação para que o fizesse. No entanto, o meu fio condutor abandona todo o seu vigor sempre que me questiono se o amor deveria ser uma consequência das nossas construções e não o seu alicerce. Cada remessa de desencanto que me é carinhosamente endereçada pelo nosso habitat natural traduz-se num transtorno de conceitos que me consome o gosto por quem somos, pelas minhas escolhas, pelo rumo das ruas e pelo odor do oxigénio. Os ideais afiguram-se pouco plausíveis pela dependência constante de que o universo e os seus emissários alinhem por semelhante diapasão. Nesses momentos, sinto que apenas a mim sobrou o amor e que não me será possível contaminar tamanho batalhão de incongruências com um Deus no qual apenas eu pareço ainda acreditar. Primeiro vem a fome, depois a frustração. O desânimo afoga a boa formação. As memórias são estranguladas por problemas consequentes de um medo que inibe qualquer derivado do amor. E nós? Vamos despedindo-nos lentamente de quem somos, do que imaginámos ser e de todos os cenários que engoliram os adornos por nós outrora colocados. Enquanto vou dizendo adeus ao amor, agarro-me de forma piedosa à dignidade de saber resguardar a minha despedida, mantendo-me perene na reserva dos derivados do medo que tantas vezes me ladeiam. Mesmo que deixe de amar, recuso-me a odiar, a invejar, a pisar ou a ludibriar. Podemos deixar de ser luz, mas também é possível optar por nunca sermos escuridão. Enquanto não me renascer o amor, prefiro ser coisa nenhuma.



by Darko


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