O amor é o amor



O amor é o amor 

Era só um domingo normal, daqueles em que acordamos tarde, com as pálpebras flácidas e o hálito conspurcado por venturas obsoletas. O planeamento acaba por padecer de uma indefinição crónica que me assusta e por parcas vezes me presenteia. Era uma e meia da tarde quando a peculiar e primorosa Regina De Azevedo Pinto me recrutou para a acompanhar a um matrimônio ao qual o seu par se tinha escusado a comparecer. Sou um desses católicos demasiadamente pouco praticantes para crer em rituais humanos como o casamento, o batizado ou o funeral. Avesso a cerimônias protocolares e enfadonhas que sou, assumidamente descrente nos certames sobre-racionalizados que elaboramos para corresponder a conveniências pouco genuínas e essenciais. Faz parte de mim ser também disponível e flexível às lacunas emocionais dos que amo e por isso mesmo, rapidamente me organizei para me poder ornamentar suficientemente para acompanhar um dos seres humanos que me creio fazer valer a pena o ímpeto de estar à altura. Nunca deixa de ser um privilégio acompanharmos com a pessoa mais bonita de uma ocasião, acrescendo o facto de sentirmos uma digna reciprocidade dessa mesma convicção. A praia do Guincho foi o cenário escolhido por um casal composto por uma graciosa canadiana e um bem humorado holandês para celebrarem o amor que agora se imortalizava, ao fim de cinco anos, num contracto que pela primeira vez transcendeu na minha óptica o eucalipto que se mata numa folha de papel. Cheguei sem elevadas expectativas, sabendo que num resumo pessimista da coisa usufruiria de uma tarde passada ao sol, num cenário esteticamente aprazível , com uma senhora que me enche os parâmetros da alma. A verdade é que foi demasiadamente mais do que o expectável. Emocionei-me múltiplas vezes, não porque associe o choro à previsibilidade da tristeza, mas a uma transcendência que por vezes não nos cabe neste pobre hospedeiro ao qual fomos confinados. Não éramos mais do que cinquenta pessoas e não havia lugar para primos afastados e familiares que apenas saudamos no natal. Genuinamente, sentia-se familiaridade e um atípico e sereno sentido de celebração. Sentámo-nos num pequeno altar com vista para os rochedos que emolduram o revolto mar do Guincho e aguardámos pela entrada de um casal de noivos que, lamentavelmente agora o digo, desconhecia por completo. Entraram, timidamente, ao som do tema "Marry me" dos Train, o que por si só fez com que me distraísse do desfile nupcial para accionar as maravilhas do Shazam. Imaginem a minha surpresa pacóvia e incredulidade ao perceber que ainda há quem personalize a banda sonora de tão especial ocasião, fugindo ao tradicionalismo rústico da marcha nupcial à qual estamos conformados. Não havia um padre idoso a orar o texto pré-instituído a que estamos habituados de forma maçuda e agoniante. Havia, ao invés de todas as coisas quem me fizeram elaborar a ideia cinzenta de matrimónio que até hoje me acompanhou, uma noiva tremelicante, um noivo amorosamente comovido e duas famílias genuinamente sincronizadas na partilha daquele que é suposto ser um dos dias mais felizes da nossa vida. Éramos os únicos portugueses, de forma modesta mas eximiamente bem apresentados, a fazer parte daquele restrito grupo de convidados, o que fez com que por diversas vezes comentássemos de forma cúmplice o facto de nos observarem como se ali estivéssemos por engano. Eu estava de facto, e foi um engano absurdamente enriquecedor e feliz que me vez adoptar um sentido de privilégio que não me é muito comum. A cerimónia foi rápida e indolor, atingindo o seu apogeu no momento em que a noiva declamou os seus votos na língua materna do noivo, mesmo não sabendo fazê-lo e recorrendo a uma decoração macarrónica. Por esta altura já eu colocava os óculos, envergonhando-me pela falta de virilidade associada a um choro proveniente de tamanha exposição visceral. A Jessica perdera a visão durante um ano após um acidente de viação em Marrocos e o Simon não se escusara a permanecer do seu lado. Conheceram-se numa qualquer noite sustentada pela calçada do Bairro Alto e tinham vivido o seu primeiro encontro a dois na praia que nos acolhia durante o programa nupcial. Ele fora o seu pilar e ela prometia ser o seu, reafirmando que nem só de instantes rosados se faz uma caminhada a dois. No púlpito encontravam-se dois intérpretes que verbalizavam o momento para ambas as famílias que ali se encontravam. "É preciso perdoar e é preciso esquecer" foi mencionado em dois idiomas, fazendo-me repetí-lo para mim em surdina na língua que melhor me assiste. Ela foi a sua pedra e o seu incentivo,ele fora o seu escape e o seu amparo. A Mãe do noivo emanava uma felicidade que não encontramos no nosso estereótipo de sogra e por esta altura dava comigo a pensar que o conceito de coerência me assusta em demasia. Não quero ser coerente, porque sê-lo é eternizar uma série de escolhas que não requerem esse peso. Devemos estar abertos a todas as mudanças adjacentes ao crescimento e seria impensável que há algum tempo me ouvissem dizer que acredito no "para sempre". A verdade é que só tenho vinte e sete anos, mas já tenho vinte sete anos e sou demasiado cioso do meu percurso para que o deixe ao acaso e para que me permita um dia olhar para trás com amargura e arrependimento. Pela primeira vez pensei que gostaria de viver aquela instância e que talvez já me sinta preparado para me entregar à vida de outrem de forma mais consistente. A minha capacidade de escolha já se apurou a ponto de querer cair num universo de afectos que sei me poder amparar por tempo indefinido, com consciência do trabalho implícito nessa jornada. Já nenhum amor menor do que este me poderia assistir e talvez por isso a solidão seja um monstro cada vez mais competente na execução dos seus sustos. Recusar-me-ia a não presentear quem me concedeu o gosto de fazer parte de uma circunstância com tamanha importância e por isso mesmo enchi-me de coragem e entreguei a minha voz aos noivos na interpretação de um tema a capella como retribuição ao rebuliço que em mim fizeram emergir. Agradeceram-me como se de meus amigos de sempre se trataram fazendo-me sentir em casa. "Casa é qualquer sítio do mundo em que esteja contigo." sempre me fez sentido. Hoje especialmente. Retornei a casa feliz por renovar os meus votos para com o amor e de alma cheia por poder fazer parte da história de alguém, num dia tão assinalável quanto este. Senti-me grato, algo que me completa e escasseia nos dias que correm. Se um dia me casar, agora que talvez queira contribuir para que isso aconteça, que seja assim. Afinal de contas, o amor é o amor. 

By Darko 

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